Sobre Ariano, Sertão e Cultura

Ariano Suassuna

Por Glauber Lima

Não há como não ter se entristecido com a notícia da morte de Ariano Suassuna. Mais ainda, difícil foi não ter tido vontade de dizer algo. Fazem dias que recebi a confirmação de sua morte e já li um bocado de coisas de pessoas externando sua relação com o que ele fez em vida.

Neste momento, qualquer tipo de preguiça – boa, má ou farsante, se esvai mediante a vontade de compartilhar algo sobre o que penso a respeito da importância de Ariano Suassuna para o Sertão, para a Cultura, e para aqueles tem em sua identidade uma relação com ambos os elementos, assim como ocorre emSertânia.

Embora tenha ouvido falar de Ariano Suassuna desde as aulas do antigo primeiro grau menorna escola O Pequeno Príncipe, ou nas Sessões da Tarde dos idos da década de 1980, que apresentava frequentemente um filme dos Trapalhões o qual fazia uma alusão ao Auto da Compadecida, foi em Recife, na Universidade, que pude entender sua dimensão e me deparar pela primeira vez com uma discussão menos festiva acerca de tudo que o envolvia: sua obra, seu papel político no governo Miguel Arraes, seu ativismo em meio à Cultura e sua postura singular enquanto intelectual.

A propósito, pode soar um pouco antipático e insensível tratar de Ariano Suassuna neste momento em um texto que, ao contrário do que tenho lido até então, não o enche de elogios começo ao fim e não o alça ao patamar de gênio inquestionável. No entanto, o que muda aqui é apenas a estratégia,o fim continua a ser o mesmo que é falar sobre sua importância, embora tal quadro seja pintado por meio de outros contornos.

Antes de começar, uma consideração: Sua obra é Clássica, com direito a todos os sentidos e problemas possíveis que se atribui a este conceito. Ariano influenciou muita gente em um determinado momento e recebeu críticas na mesma proporção e intensidade do vigor de seu pensamento.

Boa parte destas, a meu ver, justas e bem fundamentadas. Daí que se revela um dos aspectos mais importantes deste homem: Não se aprende bem sobre Cultura em Pernambuco sem conhecer o que ele pensa e as respectivas críticas que se fizeram aos seus posicionamentos. Curiosamente, uma das primeiras às quais tive oportunidade de ouvir veio de um dos seus parceiros na fundação do Movimento Armorial, o poeta Ângelo Monteiro, meu primeiro professor de Filosofia.

Mas tratemos aqui sobre o que envolve mais diretamente o Sertão em um recorte breve e sem muita profundidade para não exagerar na extensão do texto.

A cosmologia que está emArianopara explicar o Sertãoconcebe um formado idealizado do que é ser sertanejo que não corresponde ao que se percebe empiricamente. Como todo projeto de identidade coletiva, percebe-se um exercício na sua fala de dizer “ser sertanejo é ser isso, isso e aquilo”(no caso ser religioso, poético, místico, marcado duramente pela seca, rural, esperto, avesso ao que é urbano e etc.).

Como consequência, torna-se fácil olhar para o mundo e enxergar umApocalipse Cultural se constituindo dia a dia, ao passo que todos os valores que, supostamente, definem o que é o Sertão estão sendodestruídos.

O descompasso que existe entre uma série de manifestações culturais, e os interesses e anseios contemporâneos das comunidades que habitam o Sertão, é um terreno fértil para o surgimento dosque se autoproclamam, nas entrelinhas obviamente, heróis imbuídos de resgatar a cultura popular, dentre os quais o grande chefe da Liga da Justiça Cultural acabou sendo o próprio Ariano Suassuna.

Não foram raros os personagens com os quais me deparei em Sertânia, ao longo da minha adolescência,bradando em desespero pela salvação da Cultura Popular. Confesso que um dia, após ter tomado umas e outras, escutando uma prosa dessas em meio a uma Semana Estudantil, tive uma viagem surreal imaginando tais figuras vestidas com capa e uniforme, bem ao estilo Batman e Superman, jogando raios, voando,vencendo seus inimigos e salvando a cultura popular como se essa fosse uma donzela presa na torre de um castelo, bem ao estilo Reino Encantado de Ariano.

Além do problema que representa tentar estabelecer o que, afinal de contas, é Cultura Popular, não é difícil perceber o quão é complicado é essa postura de “resgatar”. As vezes parece-me que     que pela divina providência, ou por uma procuração,alguém recebeu a incumbência de não só dizer o que é a Cultura do povo como salvá-la, quando, na verdade, é dessas pessoas que ela precisa ser salva.

Ademais, fácil é, então, perceber como é conveniente este discurso para o artista ruim, incapaz de se identificar com a sua comunidade, insosso, que na onda do “vamos salvar a Cultura Popular” acaba se alçando ao posto de herói mal compreendido (ou um pretenso Dom Quixote) para galgar seu espaço e conquistar algum tipo de respeitabilidade.
Em meio ao seu pensamento sobre o Sertão, Ariano foi ainda responsável direto por fomentar uma perspectiva avessa ao elemento Urbano. Tal aspecto está muito presente no Auto da Compadecida e em outras de suas obras, ao passo que são os elementos mais caracteristicamente urbanos (o Padeiro, o Padre, a Dama sofisticada que mora na Capital entre outros) aqueles que sempre estão imersos em uma carga negativa na composição de seus personagens. O próprio Suassuna já reconheceu isso em entrevista, quando atribui este apreço pelo rural em detrimento do urbano ao conflito que culminou com a morte de seu pai na Revolução de 1930.

Tal maneira de ver a Cultura do sertão – como algo eminentemente rural e incompatível com a urbanidade – não se resolvia em minha cabeça nos idos de minha adolescência. Pois ao passo que não queria ser menos sertaniense, já amava o Recife e todo o seu cosmopolitismo, mais ainda quando me dava conta que já era um entusiasta do som que embalava a capital por meio de bandas como Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S. A. e Eddie.

Neste momento, tomei conhecimento de uma arenga entre dois queridos poetas de Sertânia que me ajudou a ver a fragilidade da perspectiva de Ariano e a resolver tal conflito em minha cabeça. Um deles, incomodado com o apreço do outro por Recife e pelas manifestações artísticas da Capital, sapecou a seguinte pérola em tom de desaforo: “Fulano de tal, antes um moleque do Moxotó, agora só quer se garoto de praia”.

Neste momento, fez sentido para mim o que queriam dizer os críticos que percebiam em Ariano e em seus seguidores uma postura inconsistente e cheia de problemas em sua tentativa de construir uma identidade – a qual, por sinal, tem sempre que ser “resgatada” – do que é o Sertão, do que é ser do Sertão.

O gosto por Jazz, Cultura Pop, Rock’Roll, HQs, Livros em inglês e quaisquer outro elemento que não se encaixe no modelo idealizado por Ariano Suassuna do que é ser sertanejo, mostra apenas que não é minha identidade de matutose está se corrompendo, se perdendo, sendo contraditória e que não mais me permite me enxergar como um moleque do Jiquiri.

Mas sim sua concepção de identidade cultural, que por ser tão idealizada, repleta de fetiches e engessada, não admite transformações, fazendo parecer que não vivemos em um mundo onde  há história, onde as coisas mudam, onde o que me faz imaginar ser hoje uma característica peculiar do povo do Sertão pode amanhã sequer existir e tais pessoas ainda continuarão a se ver como sertanejas.

Talvez, numa tentativa de rejeitar a lógica do Capital, onde sempre que se faz uma escolha é necessário abrir mão de outra por uma questão de racionalidade econômica, Ariano concebe uma relação de Cultura e Identidade onde você ou é uma coisa ou é outra. Se se escolhe gostar de Hip Hop, Aretha Franklin, Sinatra e Jack London, deixou-se de ser sertanejo, sertaniense, matuto e quaisquer outra alcunha do tipo.

Foi no momento em que Ariano ocupou o cargo de Secretário de Cultura no governo Arraes que tais contradições de seu pensamento revelaram a dimensão do estrago que podem causar. O episódio em que tratou bandas de Rock de uma região pobre do Recife como o Alto Zé do Pinho – formadas por jovens da região egressos de projetos sociais que ajudaram a diminuir a criminalidade do bairro – enquanto cultura de massa, menos dignas de receberem recursos públicos, pois não se tratam artistas de cultura popular, dá a dimensão de como tais conceitos são incapazes de se harmonizar com uma política cultural que se presta a ser democrática.

A propósito, é na anedota em torno da sua implicância com Chico Science – que sugeria ser transformado em Chico Ciência – que se tornou mais famosa sua rejeição ao uso de termos da língua inglesa. Não há quem já tenha parado para ouvi-lo falar que não tenha presenciado uma história divertidíssima acerca de suas irritações com a presença da cultura norte-americana no Brasil.

No entanto, nesta questão, fico com os tropicalistas. Ninguém melhor que eles para mostrar que há beleza e poesia onde Ariano só enxergou o lixo. Nada mais adequado para tal problema como Caetano Veloso me falando que é preciso aprender inglês, ouvir aquela canção do Roberto e dizerBaby I Love You.

Embora não sejam poucos os problemas em torno do que Ariano Suassuna pensou sobre Cultura, é neste ponto – nos problemas e polêmicas – que reside parte significativa de sua importância como um grande homem que foi.Não se fala bem sobre Cultura em Pernambuco, Sertânia ou quaisquer lócus que esteja imerso nos problemas presentes em sua perspectiva sobre o Nordeste – e o Sertão em particular, se não se conhece as pautas propostas por Ariano historicamente para se pensar tais questões. Ele possui a primazia de ter conduzido tais discussões e é no exercício de entendê-lo e criticá-lo que se aprende sobre o que é central na Cultura, especialmente no que se diz respeito às políticas culturais.

Festejar e preservar dignamente sua memória é algo que precisa ser feito mediante um exercício de compreensão e crítica de sua obra. A reprodução pura e simples de seus brados em defesa da cultura popular, erudita e armorial, acaba reduzindo a pujança de seu pensamento e colocando-o numa posição que ele nunca teve que foi a de ser “só” um grande escritor e um ótimo contador de história. Embora mereça ser superado, Ariano Suassuna é ainda, sem dúvidas, o mais importante pensador da cultura do sertão nordestino.

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