O governo de Jair Bolsonaro congelou o programa mesmo nas regiões mais carentes do Brasil. Uma a cada três cidades mais pobres do país não teve novos auxílios liberados nos últimos cinco meses com dados oficiais divulgados (junho a outubro de 2019).
O levantamento feito pela reportagem considera os 200 municípios de menor renda per capita do Brasil, apontados pelo IBGE em 2017. Em todos, houve recuo na cobertura e um ritmo de atendimento a novas famílias muito menor que em períodos anteriores.
Desde o ano passado, por falta de dinheiro, o governo passou a controlar a entrada de beneficiários no Bolsa Família. Com a barreira em todo o país, a fila de espera, que havia sido extinta em julho de 2017, voltou e não há previsão para ser novamente zerada.
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Cerca de 1 milhão de famílias aguardavam, em janeiro, uma resposta do Ministério da Cidadania para ingressarem no programa de proteção social e transferência de renda aos mais pobres.
Em Morros, nenhuma família foi atendida desde junho. A cobertura do programa na cidade caiu para o menor nível desde de 2017, apesar do esforço para estender o Bolsa Família a povoados mais afastados e regiões ribeirinhas.
Para iniciar o processo de entrada no programa, a referência dada pelos moradores do município é uma só: a casa da Espírito. Maria do Espírito Santo é a secretária de Assistência Social da cidade desde maio de 2017. “Eu gostaria que o jornal levasse um apelo a eles: Morros precisa da liberação de benefícios; tem gente precisando”.
Segundo ela, nenhuma carta ou aviso do governo federal foi recebido no ano passado. As concessões de auxílios, de repente, foram interrompidas. Reconhecido internacionalmente, o programa atende famílias com filhos de 0 a 17 anos e que vivem em situação de extrema pobreza, com renda per capita de até R$ 89 mensais, e pobreza, com renda entre R$ 89,01 e R$ 178 por mês. O benefício médio é de R$ 191.
O Bolsa Família enfrenta, sob Bolsonaro, o período mais longo de baixo índice de entrada de novos beneficiários da história do programa. Isso também ocorre nos municípios mais pobres. Entre janeiro de 2018 e maio do ano passado, 26 famílias passavam a ser atendidas por mês no grupo de 200 cidades brasileiras com menor renda per capita. Os dados mais recentes apontam que a média mensal recuou para cinco famílias.
Dessas 200 cidades, 37 tiveram apenas um novo benefício liberado de junho a outubro e, em 64 desses municípios, houve bloqueio total do programa de junho a outubro.
O congelamento foi registrado, por exemplo, em Guaribas (PI), cidade berço do Bolsa Família, e em Belágua (MA). O Maranhão concentra a maior parte das cidades mais carentes.
No cenário que se percorre de São Luis a Belágua, os traços da região, como carne de bode e a quantidade de urubus nas rodovias, se tornam mais fortes. A economia local se enfraquece e o comércio à beira da estrada cresce. Juçara -nome dado na região ao açaí- e produtos derivados de mandioca, inclusive cerveja, são anunciados.
Belágua, cidade de 7,5 mil habitantes, é onde termina a rodovia estadual MA-325. Também é onde os índices de mortalidade infantil e saneamento estão piores que a média nacional. Fundado em 1994, o município tem só 1% de arrecadação própria, um indicador de baixa atividade econômica e dependência de recursos do governo federal.
Sem dinheiro, o casal Ivanete, 19, e Denilson dos Santos, 22, teve que trocar o gás de cozinha pela lenha na hora de cozinhar mandioca e feijão para a filha Ágata dos Santos, 1 ano e 9 meses. Em situações excepcionais, eles matam um dos frangos que rodeiam a residência, localizada num bairro fora da área urbana.
“Pedimos o [benefício] do Bolsa Família há 9 meses. Toda vez que vou lá [no Centro de Referência de Assistência Social] me falam para esperar”, conta Ivanete.
Membro do comitê municipal Mais IDH-Belágua, Benilson da Silva é agente de saúde da prefeitura e visita as famílias da região desde 1997. “Reduzir o Bolsa Família é uma perda para a economia da cidade, mas também para a população. O programa reduziu o número de crianças desnutridas aqui”, avalia.
O congelamento prejudica também gestantes. Uma das vertentes do programa busca proteger mulheres pobres durante a gravidez. Raissa Naiva, 18, mora em Axixá (MA). Ela pediu o benefício quando tinha dois meses de gestação. Com o filho Luis Augusto Naiva, de dois meses, no colo, Raissa ainda aguarda na fila de espera. “Eu achei que [o programa] era para ajudar gente que precisa. É como se eu estivesse abandonada”.
Com fila crescente e redução nas concessões, em 2019 o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família recuou de 14,3 milhões, em maio, para 13,1 milhões em dezembro.
Segundo o Ministério da Cidadania, o enxugamento é causado pelo pente-fino no programa, que cancelou benefícios pagos irregularmente a famílias. Mas a média de cancelamentos de 2019 seguiu a tendência dos anos anteriores.
De janeiro de 2017 a maio do ano passado, cerca de 250 mil novos benefícios eram liberados por mês em todo o país. Essa taxa caiu para 5,4 mil de junho a outubro.
Desde outubro, o Ministério da Cidadania é questionado pelo Congresso e pela imprensa sobre a fila de espera.
Em janeiro, a pasta respondeu a pedidos feitos pela Lei de Acesso à Informação, mas somente após ordem da CGU (Controladoria-Geral da União). Ao divulgar os dados, porém, o governo apresentou uma média anual da fila de espera (494,2 mil famílias).
Segundo integrantes do governo, documentos internos mostram que a fila continuava zerada até maio e, desde então, explodiu -chegando ao patamar de 1 milhão.
Procurado, o Ministério da Cidadania não quis comentar a reportagem. Para o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, a busca por irregularidades é saudável ao programa, mas, ao mesmo tempo, é necessário dar garantias aos mais pobres diante das dificuldades da ativida- de econômica do país. “É momento de esticar a rede de proteção social, e não retirá-la”.
O governo promete, desde 2019, reformular o programa. Ainda não há previsão de quando será apresentada uma proposta. O Bolsa Família tem neste ano um orçamento de R$ 29,5 bilhões, abaixo dos R$ 32,5 bilhões de 2019.
“Não existe política pública sem financiamento regular, permanente”, critica Maria Lúcia Lopes, professora do Departamento de Serviço Social da UnB (Universidade de Brasília). Para ela, o orçamento do programa deveria ser fixo, em vez de abrir brecha para uso político.
Na reformulação, o governo planeja mudar o nome do Bolsa Família.