As 18 agrovilas no Nordeste que passaram a receber famílias reassentadas a partir de 2015 por causa da construção dos canais da transposição do rio São Francisco estão até hoje sem água para irrigação. O fornecimento após a inauguração dos primeiros canais estava previsto no contrato assinado para saída delas da área onde hoje estão os dois eixos da obra
Passados mais de cinco anos da entrega do primeiro canal —o eixo leste, em março de 2017—, moradores dessa área em Pernambuco e Paraíba ainda não contam com água da transposição. O mesmo ocorre em agrovilas na extensão do eixo norte (que inclui também o Ceará), concluída em fevereiro de 2022
Em contato com o portal UOL Notícias, o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) confirmou que nenhuma das vilas tem sistema de irrigação, mas garantiu que os projetos estão sendo feitos.
Para a construção dos canais, o governo ergueu as vilas produtivas rurais com o objetivo de receber 848 famílias que moravam na área por onde o sistema de transposição passa hoje. Como elas não eram proprietárias das terras, foram reassentadas. Outras 2.553 indenizações foram pagas a quem tinha posse dos terrenos.
O governo federal investiu R$ 208 milhões nessas agrovilas, e cada família beneficiária teve direito a um terreno de cinco hectares, sendo garantido um deles irrigado. Cada lote tem uma casa com 99 m².
Em 2017, na semana da inauguração do eixo leste, o UOL visitou uma dessas agrovilas, em Sertânia (PE), e ouviu relatos de moradores reclamando dos valores pagos e da falta de água.
Como estão em uma região semiárida, as agrovilas sofrem com a escassez de água por conta das frequentes estiagens. Helielma Ferreira Cardoso, 40, mora há sete anos na agrovila Salão, em Sertânia (PE), uma das primeiras inauguradas pelo projeto.
Ela conta que todos no local têm limitações para manter a produção em função da falta de irrigação. “A gente tem dificuldade. Só temos água de poço, mas não é muita, só dá mesmo para o consumo diário da casa”, diz.
No outro lado da divisa, Luciano dos Santos, 27, que mora na agrovila Lafayette, em Monteiro (PB), também só tem água para consumo humano —e, nesse caso, o abastecimento só passou a ser feito após o MPF (Ministério Público Federal) da Paraíba interceder e conseguir que a Cagepa (Companhia de Água e Esgotos da Paraíba) se comprometesse com o fornecimento.
“A gente até tenta criar alguns animais no lote cerqueiro [aquele com cerca, destinado à criação de animais], nos 4 hectares que temos, mas que também não tem água. Não é fácil. E plantamos no quintal da casa. Tentamos sempre plantar alguma coisa, [a gente] se vira como pode”, relata.
A agrovila é a única no trecho do eixo leste na Paraíba e foi inaugurada em 1º de dezembro de 2015. As famílias chegaram para morar em março de 2016. Apenas agora é que o governo federal chegou para dar início ao processo de instalação do sistema de irrigação. “Já houve a limpeza dos lotes, e a empresa [responsável pela instalação] está aqui só aguardando as ordens para montar a encanação e colocar os kits de irrigação. A nossa associação vai fazer o trabalho da rede elétrica”, conta o presidente da associação de moradores da agrovila, Agnaldo Freitas da Silva.
Para especialistas consultados pela coluna, deixar agricultores tanto tempo sem água é um desrespeito. “Essas vilas são para agricultores e agricultoras familiares pobres, por isso esse desprezo. Se fosse obra para o agronegócio, já estava tudo pronto”, afirma o engenheiro agrônomo José Procópio de Lucena.
Ele acompanha o processo da chegada da água da transposição no Rio Grande do Norte, que não previa agrovilas no projeto original, mas fará três para contemplar os desalojados da barragem de Oiticica — que será a primeira a receber água da transposição no estado.
O pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Pernambuco, André Monteiro, também acompanha a situação das comunidades tradicionais no estado e vê um descaso já antigo do governo com esses povos. “Há 15 anos não se bebe, não se planta e não se cria no entorno desses canais com águas do São Francisco”, lamenta.
Segundo ele, não apenas as agrovilas, mas todas as comunidades (cerca de 180, ao todo) que cederam espaços para a passagem dos canais estão sendo afetadas. Monteiro lembra que, ao longo da transposição, os eixos cruzam territórios indígenas, quilombolas e assentamentos.
Nesse período, a Fiocruz e professores da UPE (Universidade de Pernambuco) e da UFCG (Universidade Federal Campina Grande) desenvolvem projeto de reparação, dando assistência aos moradores. Mas ele cobra que essas comunidades recebam a água da transposição, como prometido. “Depois de tanto tempo, é necessário fazer uma reparação para minimizar as perdas”, afirma.
No distrito de Pernambuquinho, ao lado do eixo leste da transposição, em Sertânia, as cerca de 70 famílias que moram também não têm acesso à água.
“A gente queria, a água passa por baixo do nosso povoado, a 35 metros, mas ainda ficamos sem água. Já fizemos barulho, mas nada até aqui”, explica Suitiberto Gomes Patriota, líder comunitário local.
Em resposta, o MDR informou que, sem os sistemas, faz um repasse mensal no valor de um salário mínimo por família das agrovilas, até que sejam concluídos os projetos de irrigação. Segundo a pasta, os sistemas de irrigação nas vilas de Captação, Baixio dos Grandes, Negreiros, Uri, Queimada Grande, Malícia e Pilões, em Pernambuco; Retiro, Ipê, Vassouras e Descanso, no Ceará; Quixeramobim e Lafayette, na Paraíba; estão em fase de implantação.
“Os estudos técnicos para implantação de sistemas de irrigação nas vilas Cacaré, Irapuá 1 e Irapuá 2, Bartolomeu, localizadas na Paraíba e na Salão, em Pernambuco, encontram-se em processo de elaboração de edital”, completa.
A pasta não explicou o porquê da demora na implantação dos sistemas.
Por Carlos Madeiro – Colunista do UOL