Um sertanejo que não abandona as origens

Com raízes familiares em Sertânia o professor universitário Maurício Siqueira é destaque em matéria do Portal Leia Já.

A família de Maurício Siqueira foi umas das primeiras a povoar o Sertão do Moxotó, microrregião do estado de Pernambuco, de clima semiárido, onde chove pouquíssimo. Ele próprio, com menos de 10 anos de idade, presenciou sua primeira grande estiagem. A seca entre 1997 e 1998 matou 100 cabeças de ovelhas do seu avô e mais algumas vacas da família. Nessa mesma época, era preciso utilizar um carro de boi para buscar água potável, há oito quilômetros do sítio no qual vivia com seus pais e 11 irmãos, na zona rural da cidade de Custódia, onde nasceu.

Essa foi a primeira crise hídrica que ele viu, mas não a última. O sofrimento, ao menos, trouxe conhecimento. “O gado sempre morre na seca, mas já tínhamos notado que o bode não, pois ele é mais resistente. A partir dos ensinamentos da minha mãe e do negócio da família, a gente sempre discutia que a atividade econômica mais viável para nossa localidade era a criação de caprinos”, explica. Sua tese de mestrado, concluída em 2016, aborda justamente esse tipo de pecuária, além da agricultura familiar, atividade também praticada por seus pais, e sua potencialidade para o desenvolvimento do Moxotó.

Maurício, hoje com 27 anos, não tira o sertão da cabeça. Impossível. Deixou aquele no qual nasceu, mas vive em outro semiárido: o alagoano. Ele é professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), na cidade de Santana do Ipanema, onde ensina três disciplinas no curso de economia. Realizado profissionalmente, depois de vivenciar todas as dificuldades comuns ao sertanejo pobre, ele briga pela melhoria do lugar de onde veio. “Quando a gente vai pra universidade tem uma função social importante. Voltei para o sertão, não foi o meu, infelizmente, mas voltei. Luto para no futuro voltar de vez para minha terra. Muitos estudam e vão embora, quero fazer o caminho reverso”, garante.

Pau de arara
João Ricardo, pai de Maurício, era agricultor. Além de criar bodes, plantava milho, feijão, hortaliças e frutas. Uma luta diária contra o clima da caatinga. Sua mãe, Marieta, era professora da escola básica. Ambos sempre incentivaram os filhos a estudar, sabendo que as dificuldades seriam maiores, caso contrário. “Lá não tinha perspectiva de mudança, a cidade não tinha nada. Minha mãe dizia que não queria que a gente permanecesse lá, queria que estudássemos”, conta Maurício.
Na zona rural, só existia até a 4ª série. Depois disso os alunos dos sítios tinham que estudar na Agrovila do Dnocs, onde cursavam até a 8ª série. Depois, só na área urbana de Custódia, distante 25 km do sítio de Maurício. O transporte era no pau de arara, caminhão adaptado para transportar pessoas na carroceria. “Era um F 4000 com bancos de madeira e uma lona. Lembro que era do meu primo, alugado pela Prefeitura para levar os estudantes. Pela manhã carregava água e à tarde e à noite, os alunos. Mas isso nunca foi fora da realidade. Nunca achamos ruim, porque era a conjuntura do local”, recorda-se. Isso tudo, ele lembra, sem deixar de cuidar dos negócios da família. Das 6h às 12h, o trabalho era na roça.

Vestibular
No 3º ano, a engenharia ficou mais complicada ainda. “Eu fazia o ensino médio durante a semana e sábado e domingo, ia para o cursinho pré-vestibular na cidade de Iguaracy, a 70 km de distância. Na sexta-feira eu dormia em Custódia para no dia seguinte de manhã cedo ir para a aula. Passava o fim de semana na casa do meu tio avô que morava lá, voltava domingo e segunda ia pra roça”, afirma.
O sacrifício foi recompensado em 2007, quando passou em ciências econômicas na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), na unidade de Serra Talhada. Porém, a falta de estrutura do campus recém inaugurado deixava o local a desejar. “O prédio era ruim, não tinha estrutura, ônibus. Devido a tantas dificuldades e mesmo assim longe de Custódia, resolvi refazer o vestibular e fui pra Recife, em 2010. Lá já consegui estágio e dois anos depois fui contratado como assistente de pesquisa de uma empresa”, revela.
No tempo em que viveu na capital, a casa da irmã, no bairro do Arruda, foi seu abrigo. Marleide Siqueira lembra do esforço do irmão que, até hoje, é um modelo para a família. “Eu falo direto que ele é um exemplo. É alguém para as pessoas se inspirarem. Conto a história dele para meus filhos. Eu sei o que é esse sofrimento, também andei de pau de arara e vivi sem água encanada e energia”, lembra.

Próximo passo: doutorado
De 2012 a 2016, Maurício dedicou-se ao mestrado. Depois começou a estudar para concurso e passou para professor da UFAL. Ao recordar-se de toda trajetória difícil pela qual passou, o orgulho de ter vencido todos os obstáculos não fica escondido nem um pouco. “Tinha época que eu não tinha dinheiro para lanchar. O caminhão quebrou à noite várias vezes, na época de chuva atolava no meio do nada, às 23h. Mas eu faria tudo novamente. Eu me sinto feliz. Você vem do campo e faz uma universidade de qualidade, um curso excelente. Trabalho na minha área, luto pela melhoria do local que trabalho. A maioria dos alunos é da região, são cotistas. Estou realizado, politicamente e como pessoa”, comemora.
Reconhecer a terra de origem e buscar avanços para o local é ainda uma missão que ele pretende seguir. “A mídia vende que lá fora sempre é o melhor. Mas não é. Conheço gente que é dona da própria terra e vai para a cidade trabalhar em subempregos. Vai e volta pior. Hoje sou um ativista da manutenção do campesinato. Na minha tese de doutorado que estou escrevendo agora, vou dissertar sobre a falta de interesse desses jovens em permanecer no campo. Essa ausência de políticas públicas gera desemprego e problemas maiores. Além disso, a segurança alimentar do país entra em colapso, já que grande parte dos produtos são cultivados no interior”, esclarece.
O sítio na zona rural de Custódia não abriga mais nenhum membro da família Siqueira. Seu João Ricardo e dona Marieta faleceram e os filhos ganharam o mundo, mas a casa ainda permanece lá. “Tem um morador que cria animais e ainda produz. Não temos interesse de morar lá, mas também não temos de vender. Deixamos uma pessoa tomando conta para preservar nossa história”, diz. O lar de Maurício é como se fosse um marco zero de toda sua história. “Tive uma mãe ativista que lutava para o desenvolvimento do local, lutava para que a comunidade quilombola da cidade fosse reconhecida. O que sou hoje vem da educação doméstica”, explica.

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